"Ponto de vista": Sobre o "acordo" ortográfico.


Nem Ata nem desata. Acordo ou sonho ? 

Conforme noticiado recentemente, discordâncias no seio da CPLP sobre o "acordo ortográfico", nomeadamente quanto ao uso da palavra "ata" a propósito do texto final sobre a XIV Conferência dos Ministros da Justiça, obrigaram ao uso de duas grafias na respectiva acta.

Parece assim oportuno suscitar-se uma vez mais a revisão da utilidade de um "acordo" que como se acaba de constatar está no seu estertor de morte.

E, independentemente de outras iniciativas que por certo surgirão, será útil recordar-se que o Provedor de Justiça pode requerer ao Tribunal Constitucional a declaração de ilegalidade de normas, nos termos do artigo 281.º, números 1 e 2, alínea d), da Constituição.

A propósito de tais competências é útil a transcrição dos seguintes trechos de um artigo da autoria do actual Provedor (escrito antes de ocupar o seu presente cargo) e de Francisco Ferreira de Almeida, publicado em 13 de Fevereiro de 2012:

" Por força do art. 8.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, a vigência internacional de um tratado é condição da sua vigência interna. Ora, no plano internacional, um tratado entra em vigor logo que o consentimento a ficar vinculado por ele (através do acto de ratificação) seja manifestado por todos os Estados que hajam intervindo na respectiva negociação (cfr. art. 24.º, n.º 2 da Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de 1969 - CV). Admite-se, é certo, no n.º 1 da mesma disposição, a possibilidade de as partes convirem numa solução diversa, designadamente a da entrada em vigor da convenção internacional em causa no momento em que se atinja um determinado número de ratificações. Sucede, todavia, que tal solução, apresentando-se como perfeitamente concebível para tratados multilaterais gerais, não parece feita à feição de tratados com um número limitado de partes... E, muito em particular, de um tratado com as especificidades do AO, em que claramente se sobrepuja o imperativo de que ele constitua uma totalidade solidária... De resto, um regime jurídico diferenciado, v. g., em matéria de adesão, de formulação de reservas, de eventual produção de efeitos para Estados terceiros, etc., acaba por singularizar, face aos demais, este tipo de pactos multilaterais restritos.
Acresce que do acto de autenticação (ou assinatura) de um tratado internacional decorrem certos efeitos jurídicos. De entre eles, o da inalterabilidade do texto (art. 10.º da CV) e o do dever geral de boa-fé (art. 18.º da CV), 
traduzindo-se este último num dever de abstenção de actos que atentem contra o objecto ou fim da convenção. 

Pois bem, se por um lado o II Protocolo Modificativo do AO, de Julho de 2004, ao arrepio daquele primeiro sentido normativo, alterou, em parte, a redacção originária do AO, fazendo, do mesmo passo, letra morta do n.º 4 do art. 24.º da CV, que considera obrigatórias, desde a adopção do texto, as cláusulas relativas às modalidades da entrada em vigor, por outro - o que se nos afigura bem mais grave - consubstanciou justamente um acto (concertado!) que malogrou, sem apelo nem agravo, o objecto e a finalidade do tratado. Com efeito, não se vê como o propósito assumido da criação de uma ortografia unificada para o português possa ser alcançado com o consentimento à vinculação a ser exprimido por apenas três dos oito Países de Língua Oficial Portuguesa. Tratar-se-ia, a nosso ver, de uma verdadeira contradictio in terminis que confrangeria passar em claro, não fora a circunstância de, em 2004, se ter procurado, pura e simplesmente, encontrar uma solução expeditiva - imponderadamente inspirada numa suposta prática da CPLP - para a entrada em vigor, a todo o transe, do AO. 

Nessa ocasião, Portugal acabaria, ironicamente, por postergar normas constantes da CV a que se vinculara pouco tempo antes por Decreto do Presidente da República, n.º 46/2003, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 181, de 7 de Agosto de 2003... ".

E, a concluir, é referido no citado artigo o seguinte:

"Com isto se demonstra, julgamos, que no próprio interesse dos "turiferários" do chamado AO - indiferentes aos argumentos da diversidade, da etimologia, da sonoridade e da estética da língua, reiteradamente brandidos pelos seus opositores - se justifica, quanto antes, sobrestar na decisão de o considerar já em vigor (em vigor, mas como?), porquanto tal hipotético assomo de clarividência equivaleria, bem vistas as coisas, à prática de um acto destinado à preservação da sua integridade - outro dos corolários do aludido dever geral de boa-fé que impende sobre os signatários de uma convenção internacional."

É assim, lícito, dada a opinião expendida que acabo de transcrever, que seja sugerido ao Provedor que pondere a eventualidade de exercer desde já as competências que lhe são conferidas pela Lei, requerendo ao Tribunal Constitucional a declaração de ilegalidade das normas que visam a entrada em vigor do designado "Acordo ortográfico".

28,Junho.2015.